domingo, 7 de setembro de 2025

UM CONTO SOBRE TRAIÇÃO

Obs: Narrado em primeira pessoa do sexo feminino

Acordei quando boa parte da manhã já tinha ido. Com certa lerdeza no andar e a visão um tanto turva, eu olhava à minha volta e não conseguia encontrar os pães. Estava certa de que havia uma embalagem fechada de pães de forma. Eu os mantive guardados, justamente para não ter o trabalho de ir à padaria quando não me sentisse disposta, mas agora não os encontrava, então me restou escovar os dentes, tacar uma água na cara, colocar uma roupa e ir comprar os benditos pães de todo dia. Só que eu não comprava pães de forma na padaria. Não. Lá, eles custavam mais caro. Compensava aproveitar as ofertas do supermercado. Na padaria, eu dava preferência ao filãozinho, ou seja: o tal do pão francês.

Antes, inventei de fazer café. Enquanto ele passava pelo coador, meu intestino deu sinais. Poxa, não podia esperar um pouco, até que eu voltasse da padaria? O jeito foi obedecer. Fiquei mais tempo do que pensei. Uma parte gordurosa indicou que tinham ido embora os lanches gordurosos consumidos ontem, na minha mãe. Sentindo-me cinquenta quilos mais leve, tive a sensação de flutuar a cada passo. Sério! Não tem sensação melhor que esta! Nem a do orgasmo!

O café estava pronto. Fechei a garrafa térmica, lavei as peças do coador e procurei a caneca que eu sempre utilizava para bebericar um pouco dele. Não a encontrei. Raios! O que estava acontecendo? O jeito era ir logo até a padaria. Como se, ao voltar, uma mágica aconteceria: eu encontraria minha caneca e, quem sabe, até os pães de forma.

Quando saí portão afora, vi o carro do irmão de Júnior estacionado em frente a casa dele. João Gilberto estava sozinho. Achei um verdadeiro milagre “aquela uma” não ter vindo. Se bem que não era nada comum a presença do próprio Gil em pleno dia de semana, quase na hora do almoço. Aquilo foi o suficiente para que eu acionasse, automaticamente, uma luzinha amarela dentro de mim. Aquela que, a exemplo dos semáforos, indica atenção. No caso, parecia que algo estava prestes a acontecer. 

Fingi esquecer alguma coisa, então voltei para dentro de minha casa, mas fiquei andando feito barata tonta pela garagem, fazendo de conta que estava procurando algo. Se alguém me perguntasse, eu diria que minha moeda tinha caído em algum lugar. A verdade é que eu resolvi enrolar, a fim de ver o que se desenrolaria à minha frente, já que era possível ver tudo o que se passava pelas grades do meu portão.

A casa de Júnior tinha campainha. Gil a tocou e, em seguida, escutei-o dizendo ao celular:

— Abre essa porra, senão vai ser pior pra você!

A voz dele não era alta. A pronúncia me soou quase inaudível. Era um tom macio, suave e grave ao mesmo tempo. Não era um vozeirão inflamado. Era uma voz masculina, só que suave. Ainda que ele estivesse puto, era próprio de sua voz o som de uma certa calma.

O portão de Júnior é um pouco melhor em relação ao meu, só que ambos não possuímos trava automática. Para destrancá-lo, é preciso que Júnior apareça com as chaves. Continuei me fingindo de morta, na expectativa de vê-lo surgindo. E foi o que aconteceu.

Eu me lembrei de ontem, quando saí sem ser notada enquanto Júnior dormia, de quando tranquei tudo e atirei as chaves ao chão, vendo-as deslizar pelo piso frio e liso, até pararem no rumo da porta da sala. Era para Júnior, agora, se agachar para apanhá-las, só que não. O modo direto do caminhar dele rumo ao portão me fez entender que o bonito já tinha acordado há certo tempo e apanhado as chaves. Ok, eu era a dorminhoca da ocasião. Queria pensar que ele também tivesse dormido bastante, como eu, e só neste exato momento estivesse indo até o portão. Então eu o veria abrindo a porta da sala e estranhando o fato de flagrar as chaves bem ali, um passo adiante, no chão da garagem. Ele se agacharia para pegá-las e se lembraria de mim com carinho. Essa idealização só existiu na minha cabeça.

Júnior veio rápido até o portão, pedindo calma. Ouvi ele falando “calma”, umas três vezes, no mínimo. E cada vez que Gil o ouvia, mais eriçado ficava. 

Gil nem entrou direito e já foi para cima de Júnior. Quis esmurrá-lo, mas o irmão, esperto que é, afastou-se logo. Gil gritava, xingava nomes horrorosos, nem parecia aquele homem controlado que eu tanto via. Não me lembro desse descontrole nem no dia do atropelamento de sua própria filha: aquele momento estúpido que eu gostaria de não me lembrar.

Júnior correu para dentro. Gil o seguiu, ainda gritando. O portão ficou aberto.

Não havia mais motivo para permanecer em minha garagem. Fui até o portão dele e fiquei na indecisão sobre adentrar. Percebi os dois lá dentro, na sala, um querendo falar mais alto que o outro, mas nada se aproveitava, eram ofensas de baixo calão. Alguns barulhos indicavam ações bruscas de alguém. Nesse momento, uma voz feminina surgiu, histérica, no desespero de apaziguar os ânimos. Ouvi dois novos barulhos. Pareciam murros. Ou eram empurrões? Alguém havia caído. A mulher gritava. Seu desespero era visível. 

Fiquei preocupada no momento em que ela falou:

— Para! Larga ele! Larga! Larga! Larga! Você vai matar o seu irmão! Ele tá ficando roxo! Não tá vendo? Larga ele, pelo amor de Deus, homem!

Eu estava pronta para intervir, mas percebi a súbita movimentação de alguém prestes a sair da sala e vir para a garagem, então, não sei o que me deu, eu me escondi em uma telha de amianto grande, colocada na vertical, que se apoiava em uma das paredes na área da garagem. Ninguém me via ali.

Gil apareceu sendo conduzido a duras penas pela própria esposa, que não parava de gritar para que fosse embora. Ela gritava, ele gritava os impropérios contra o irmão e Júnior revidava as ofensas, surgindo em seguida, apresentando certa dificuldade ao falar.

A tosca da mulherzinha, a muito custo, conseguiu tirar o marido de dentro da garagem.

— Pelo amor de Deus, homem! Vamos embora já!

— Sua puta! Vagabunda! Você vai ver quando chegarmos em casa! Ferro com a minha vida, mas você não vai ficar impune!

— Para! Para com isso, animal! O que você pensa que tá fazendo? Vamos embora logo, antes que alguém chame a polícia!

E Júnior, lá de dentro:

--Vai, corno! Obedece sua mulher, chifrudão! Tomou no cu gostoso, irmão! Cornão!

Uma nova descarga de adrenalina se apoderou de Gil, fazendo com que ele empurrasse a tonta da esposa e voltasse para a garagem. Júnior picou a mula para dentro, trancando a porta da sala e gritando lá de dentro:

— Corno! Corno viado! Corno manso! Chifrudo! Muuu! Ah, Ah, Ah!

Gil esmurrava a porta:

— Desgraçado! Vou acabar com sua raça!

— Muuu! Ah, Ah, Ah! Lero-Lero! Corno!

Gil começou a chutar a porta:

— Vou botar essa porra abaixo e vou acabar com a sua vida!

Lá fora, a mulher gritava e pedia para que fossem embora. 

Lá dentro, Júnior ria e debochava.

— Chupa essa fruta! Chupa essa fruta que pra você só tem o caroço! Eu já comi ela todinha! Ah, Ah, Ah!

Por incrível que pareça, a porta resistiu a todos os muros e pontapés de Gil, e não foram poucos. Por fim, o efeito da adrenalina foi passando e ele resolveu se juntar à esposa, lá fora, junto ao carro. Ela já não sabia mais o que dizer para convencê-lo a ir. Calou-se quando ele passou ao lado e vociferou um cala-boca, então entraram no carro e partiram.

Júnior abriu a porta e foi ligeiro em direção ao portão, viu o carro se distanciando e gritou mais impropérios. Sua voz estava rouca, praticamente afônica. Notei um hematoma ao redor do olho esquerdo e outro na parte inferior do nariz que, por sua vez, estava sangrando.

Ele ficou na calçada por um tempo, olhando o carro desaparecer ao longe. Ao entrar, trancou o portão e levou um susto quando me viu. Eu já tinha saído de trás da telha. Estava só observando quanto tempo ele levaria para me notar.

— Sandra!?

— Só me deixe sair, Júnior. Por favor.

— Er… Er… 

Ele queria me falar alguma coisa, mas percebi a dificuldade em concatenar as ideias. Eu não estava com ânimo para desenvolver nenhum tipo de papo cabeça àquela altura dos acontecimentos. Eu só queria sumir.

— Não… — ele disse, com muito sacrifício; até respirava com dificuldade, tamanha surpresa lhe causei.

— Só abra esse portão –- fui incisiva.

Ele o destrancou e o abriu. Dei uma última olhada naquele rosto machucado. Reparei também em uma vermelhidão no pescoço. Talvez tenha sido asfixiado por um mata-leão, o que tem a ver com os gritos da piranha, há pouco, dizendo que ele estava ficando roxo. Sim. Foi ele quem apanhou. E minha vontade era de bater nele também.

Só fui.

-------

Não comi os pães. Que pães? Os pães de forma que eu achei em um canto, no fundo da geladeira. Pois é! Era só ter aberto a geladeira.

Se eu tivesse aberto a geladeira, teria encontrado os pães de forma.

Se eu tivesse aberto a geladeira, não teria visto a menor necessidade de ir à padaria.

Se eu tivesse aberto a geladeira, não teria ido, àquela hora, até o portão de casa, não teria visto o carro do irmão de Júnior lá fora e não teria descoberto que Júnior me traiu com a cunhada.

Como a vida, às vezes, parece rir gostoso na cara da gente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

UM CONTO SOBRE TRAIÇÃO

Obs: Narrado em primeira pessoa do sexo feminino Acordei quando boa parte da manhã já tinha ido. Com certa lerdeza no andar e a visão um tan...